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Viagem Apostólica do Papa Francisco ao Chile e Peru (15-22 de janeiro de 2018)
22/01/2018

SAUDAÇÃO DO PAPA FRANCISCO AOS JORNALISTAS DURANTE O VOO PARA O CHILE

Segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

Greg Burke

Santidade, obrigado! Obrigado, antes de mais nada, pela lembrança desta manhã: todos recebemos o postal ilustrado [com a imagem da criança] de Nagasaki. E obrigado sobretudo pela possibilidade de viajar com Vossa Santidade. Voo completo: 70 pessoas, incluindo (creio eu!) 12 do Chile e Perú e, portanto, 12 novas. Aproveito para lhes dizer que é um cumprimento, não são 70 perguntas durante a passagem por junto de vós que agora fazemos. Por mim é tudo. Talvez Vossa Santidade queira dizer qualquer coisa...

Papa Francisco

Bom dia! Desejo-vos uma boa viagem. Disseram-me, da Alitalia, que o voo Roma-Santiago é o voo direto mais longo que tem a Companhia: quinze horas e quarenta (ou vinte… não sei!) minutos. Teremos tempo para descansar, trabalhar, fazer tantas coisas. Obrigado pelo vosso trabalho, que será árduo: três dias num país, três dias no outro... Para mim, será menos difícil no Chile, porque estudei lá durante um ano, tenho muitos amigos e conheço-o bem (bem… não direi! Tenho mais conhecimentos). Ao passo que, do Perú, conheço menos, porque fui lá duas ou três vezes para convénios, encontros.

Depois, Greg, falava disto [o postal ilustrado] que vos dei: esta fotografia, encontrei-a por acaso. Foi tirada em 1945, na parte de trás estão os dados. Trata-se duma criança, com o seu irmãozinho morto às costas, enquanto espera pela sua vez diante do crematório, em Nagasaki, depois da bomba. Comovi-me quando vi esta [foto], e ousei escrever apenas: «O fruto da guerra». Então pensei em fazê-la imprimir e oferecer-vo-la, porque uma imagem como esta comove mais do que mil palavras. Por isso, quis partilhá-la convosco.

De novo, obrigado pelo vosso trabalho!

Greg Burke

Obrigado!

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VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO AO CHILE E PERU (15-22 DE JANEIRO DE 2018)

ENCONTRO COM AS AUTORIDADES, A SOCIEDADE CIVIL E O CORPO DIPLOMÁTICO

DISCURSO DO SANTO PADRE

Santiago - Palácio de la Moneda, terça-feira, 16 de janeiro de 2018

 

Senhora Presidente,

Membros do Governo da República e do Corpo Diplomático,

Representantes da sociedade civil,

Distintas Autoridades,

Senhoras e senhores!

Estou feliz por poder encontrar-me de novo em solo latino-americano e começar a visita a esta amada terra chilena, que me hospedou e formou na minha juventude; gostaria que os dias passados convosco fossem também um tempo de agradecimento por tanto bem recebido. Volta-me à mente esta estrofe, que ouvi há pouco, do vosso Hino Nacional: «Puro, ó Chile, é o teu céu azulado, / brisas puras te cruzam também, / e o teu campo de flores bordado / é a cópia feliz do Éden». É um verdadeiro canto de louvor à terra que habitais, cheia de promessas e desafios mas sobretudo grávida de futuro. De certo modo foi o que disse a Senhora Presidente.

Obrigado, Senhora Presidente, pelas palavras de boas-vindas que me dirigiu. Na sua pessoa, quero saudar e abraçar o povo chileno do extremo norte da região de Arica e Parinacota até ao arquipélago do sul «dissolvendo-se em penínsulas e canais».[1] A vossa diversidade e riqueza geográfica permitem-nos vislumbrar a riqueza da polifonia cultural que vos carateriza.

Agradeço a presença dos membros do Governo, dos Presidentes do Senado, da Câmara dos Deputados e do Supremo Tribunal, bem como das demais Autoridades do Estado e seus colaboradores. Saúdo o Presidente eleito aqui presente, Senhor Sebastián Piñera Echenique, que recebeu recentemente o mandato do povo chileno para governar os destinos do país nos próximos quatro anos.

O Chile salientou-se, nos últimos decénios, pelo desenvolvimento duma democracia que lhe consentiu um notável progresso. As recentes eleições políticas foram uma manifestação da solidez e maturidade cívica alcançada, e isto adquire um relevo particular neste ano em que se comemora o bicentenário da declaração de independência. Momento particularmente importante, pois marcou o vosso destino como povo, baseado na liberdade e no direito, que teve também de enfrentar vários períodos turbulentos, conseguindo todavia – não sem dor – superá-los. Desta forma, soubestes consolidar e robustecer o sonho dos vossos pais fundadores.

Neste sentido, recordo as palavras emblemáticas do Cardeal Silva Henríquez, quando afirmava num Te Deum: «Nós – todos – somos construtores da obra mais bela: a pátria. A pátria terrena que prefigura e prepara a pátria sem fronteiras. Esta pátria não começa hoje, connosco; mas não pode crescer nem frutificar sem nós. Por isso a recebemos com respeito, com gratidão, como uma tarefa iniciada há muitos anos, como uma herança que nos orgulha e simultaneamente nos compromete».[2]

Cada geração deve fazer suas as lutas e as conquistas das gerações anteriores e levá-las a metas ainda mais altas. É o caminho. O bem como, aliás, o amor, a justiça e a solidariedade não se alcançam duma vez para sempre; hão de ser conquistados cada dia. Não é possível contentar-se com o que já se obteve no passado nem instalar-se a gozá-lo como se esta situação nos levasse a ignorar que muitos dos nossos irmãos ainda sofrem situações de injustiça que nos interpelam a todos.

Na verdade, tendes pela frente um desafio grande e apaixonante: continuar a trabalhar para que a democracia, o sonho dos vossos pais, não se limite aos aspetos formais mas seja verdadeiramente um lugar de encontro para todos. Seja um lugar onde todos, sem exceção, se sintam chamados a construir casa, família e nação. Um lugar, uma casa, uma família chamada Chile: generoso, acolhedor, que ama a sua história, que trabalha pelo presente da sua convivência e olha com esperança para o futuro. Faz-nos bem lembrar aqui as palavras de Santo Alberto Hurtado: «Uma nação, mais do que suas fronteiras, mais do que suas terras, suas cordilheiras, seus mares, mais do que a sua língua ou suas tradições, é uma missão a cumprir».[3] É futuro. E este futuro decide-se, em grande parte, pela capacidade de escuta que têm o seu povo e as suas autoridades.

Esta capacidade de escuta adquire um grande valor nesta nação, onde a pluralidade étnica, cultural e histórica exige ser protegida de qualquer tentativa feita de parcialidade ou supremacia e que coloca em jogo a capacidade de deixar cair dogmatismos exclusivistas numa sã abertura ao bem comum (que, se não apresentar um caráter comunitário, nunca será um bem). É indispensável escutar: ouvir os desempregados, que não podem sustentar o presente e menos ainda o futuro das suas famílias; ouvir os povos nativos, muitas vezes esquecidos e cujos direitos necessitam de ser atendidos e a sua cultura protegida, para que não se perca uma parte da identidade e riqueza desta nação. Ouvir os migrantes, que batem às portas deste país à procura duma vida melhor e, por sua vez, com a força e a esperança de querer construir um futuro melhor para todos. Ouvir os jovens, na sua ânsia de ter maiores oportunidades, especialmente no plano educativo, e assim sentir-se protagonistas do Chile que sonham, protegendo-os ativamente do flagelo da droga que lhes rouba o melhor das suas vidas. Ouvir os idosos, com a sua sabedoria tão necessária e a carga da sua fragilidade. Não podemos abandoná-los. Ouvir as crianças, que assomam ao mundo com os seus olhos cheios de deslumbramento e inocência e esperam de nós respostas reais para um futuro de dignidade. E aqui não posso deixar de exprimir o pesar e a vergonha, vergonha que sinto perante o dano irreparável causado às crianças por ministros da Igreja. Desejo unir-me aos meus irmãos no episcopado, porque é justo pedir perdão e apoiar, com todas as forças, as vítimas, ao mesmo tempo que nos devemos empenhar para que isso não volte a repetir-se.

Com esta capacidade de escuta, somos convidados – hoje de forma especial – a prestar uma atenção preferencial à nossa Casa Comum. Ouvir a nossa Casa Comum: promover uma cultura que saiba cuidar da terra, não nos contentando com oferecer respostas pontuais aos graves problemas ecológicos e ambientais que se apresentem; requer-se aqui a ousadia de oferecer «um olhar diferente, um pensamento, uma política, um programa educativo, um estilo de vida e uma espiritualidade que oponham resistência ao avanço do paradigma tecnocrático»,[4] que privilegia a irrupção do poder económico em prejuízo dos ecossistemas naturais e, consequentemente, do bem comum dos nossos povos. A sabedoria dos povos nativos pode oferecer um grande contributo. Deles, podemos aprender que não existe verdadeiro desenvolvimento num povo que volta as costas à terra com tudo e todos os que nela se movem. O Chile possui, nas suas raízes, uma sabedoria capaz de ajudar a transcender a conceção meramente consumista da existência para adquirir uma atitude sapiencial em relação ao futuro.

A alma do caráter chileno – a Presidente dizia dele que era um pouco desconfiado – a alma do caráter chileno é vocação a ser, essa teimosa vontade de existir.[5] Vocação, para que todos são convocados e de que ninguém se pode sentir excluído ou dispensado. Vocação que requer uma opção radical pela vida, especialmente em todas as formas em que a mesma se vê ameaçada.

Agradeço mais uma vez o convite que me possibilitou vir encontrar-me convosco, com a alma deste povo; e rezo para que a Virgem do Carmo, Mãe e Rainha do Chile, continue a acompanhar e fazer crescer os sonhos desta abençoada nação. Obrigado!

 

[1] Gabriela Mistral, Elogios de la tierra de Chile.

[2] Homilia no Te Deum Ecuménico (4/XI/1970).

[3] Te Deum (setembro de 1948).

[4] Francisco, Carta enc. Laudato si’, 111.

[5] Cf. Gabriela Mistral, «Breve descripción de Chile», in: Anales de la Universidad de Chile (14), 1934.

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VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO AO CHILE E PERU (15-22 DE JANEIRO DE 2018)

EUCARISTIA PELA PAZ E JUSTIÇA

HOMILIA DO SANTO PADRE

Santiago - Parque O’Higgins, terça-feira, 16 de janeiro de 2018

«Ao ver a multidão…» (Mt 5, 1): nestas primeiras palavras do Evangelho que acabamos de ouvir, encontramos a atitude com que Jesus quer vir ao nosso encontro, a mesma atitude com que Deus sempre surpreendeu o seu povo (cf. Ex 3, 7). A primeira atitude de Jesus é ver, fixar o rosto dos seus. Aqueles rostos põem em movimento o entranhado amor de Deus. Não foram ideias nem conceitos que moveram Jesus; foram os rostos, as pessoas. É a vida que clama pela Vida, que o Pai nos quer transmitir.

Ao ver a multidão, Jesus encontra o rosto das pessoas que O seguiam; e o mais interessante é que elas, por sua vez, encontram, no olhar de Jesus, o eco das suas buscas e aspirações. De tal encontro, nasce este elenco de Bem-aventuranças, o horizonte para o qual somos convidados e desafiados a caminhar. As Bem-aventuranças não nascem duma atitude passiva perante a realidade, nem podem nascer de um espectador que se limite a ser um triste autor de estatísticas do que acontece. Não nascem dos profetas de desgraças, que se contentam em semear deceções; nem de miragens que nos prometem a felicidade com um «clique», num abrir e fechar de olhos. Pelo contrário, as Bem-aventuranças nascem do coração compassivo de Jesus, que se encontra com o coração compassivo e necessitado de compaixão de homens e mulheres que desejam e anseiam por uma vida feliz; de homens e mulheres que conhecem o sofrimento, que conhecem a frustração e a angústia geradas quando «o chão lhes treme debaixo dos pés» ou «os sonhos acabam submersos» e se arruína o trabalho duma vida inteira; mas conhecem ainda mais a tenacidade e a luta para continuar para diante; conhecem ainda mais o reconstruir e o recomeçar.

Como é perito o coração chileno em reconstruções e novos inícios! Como vós sois peritos em levantar-vos depois de tantas derrocadas! A este coração, faz apelo Jesus, para que este coração receba as Bem-aventuranças!

As Bem-aventuranças não nascem de atitudes de crítica fácil nem do «palavreado barato» daqueles que julgam saber tudo, mas não se querem comprometer com nada nem com ninguém, acabando assim por bloquear toda a possibilidade de gerar processos de transformação e reconstrução nas nossas comunidades, na nossa vida. As Bem-aventuranças nascem do coração misericordioso, que não se cansa de esperar; antes, experimenta que a esperança «é o novo dia, a extirpação da imobilidade, a sacudidela duma prostração negativa» (Pablo Neruda, El habitante y su esperanza, 5).

Jesus, quando diz bem-aventurado o pobre, o que chorou, o aflito, o que sofre, o que perdoou..., vem extirpar a imobilidade paralisadora de quem pensa que as coisas não podem mudar, de quem deixou de crer no poder transformador de Deus Pai e nos seus irmãos, especialmente nos seus irmãos mais frágeis, nos seus irmãos descartados. Jesus, quando proclama as Bem-aventuranças, vem sacudir aquela prostração negativa chamada resignação que nos faz crer que se pode viver melhor, se evitarmos os problemas, se fugirmos dos outros, se nos escondermos ou fecharmos nas nossas comodidades, se nos adormentarmos num consumismo tranquilizador (cf. Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium, 2). Aquela resignação que leva a isolar-nos de todos, a dividir-nos, a separar-nos, a fazer-nos cegos perante a vida e o sofrimento dos outros.

As Bem-aventuranças são aquele novo dia para quantos continuam a apostar no futuro, continuam a sonhar, continuam a deixar-se tocar e impelir pelo Espírito de Deus.

Como nos faz bem pensar que Jesus, desde Cerro Renca ou de Puntilla, nos vem dizer: «Bem-aventurados...» Sim, bem-aventurado tu… e tu…, cada um de nós. Bem-aventurados vós que vos deixais contagiar pelo Espírito de Deus, lutando e trabalhando por este novo dia, por este novo Chile, porque vosso será o reino do Céu. «Bem-aventurados os obreiros de paz, porque serão chamados filhos de Deus» (Mt 5, 9).

E perante a resignação que, como uma rude zoada, mina os nossos laços vitais e nos divide, Jesus diz-nos: bem-aventurados aqueles que se comprometem em prol da reconciliação. Felizes aqueles que são capazes de sujar as mãos e trabalhar para que outros vivam em paz. Felizes aqueles que se esforçam por não semear divisão. Desta forma, a bem-aventurança faz-nos artífices de paz; convida a empenhar-nos para que o espírito da reconciliação ganhe espaço entre nós. Queres ser ditoso? Queres felicidade? Felizes aqueles que trabalham para que outros possam ter uma vida ditosa. Queres paz? Trabalha pela paz.

Não posso deixar de evocar aquele grande Pastor que teve Santiago e que disse num Te Deum: «“Se queres a paz, trabalha pela justiça” (...). E se alguém nos perguntar: “Que é a justiça?” ou se porventura consiste apenas em “não roubar”, dir-lhe-emos que existe outra justiça: a que exige que todo o homem seja tratado como homem» (Cardeal Raúl Silva Henríquez, Homilia no Te Deum ecuménico, 18/IX/1977).

Semear a paz à força de proximidade, de vizinhança; à força de sair de casa e observar os rostos, de ir ao encontro de quem se encontra em dificuldade, de quem não foi tratado como pessoa, como um digno filho desta terra. Esta é a única maneira que temos para tecer um futuro de paz, para tecer de novo uma realidade sempre passível de se desfiar. O obreiro de paz sabe que muitas vezes é necessário superar mesquinhezes e ambições, grandes ou subtis, que nascem da pretensão de crescer e «tornar-se famoso», de ganhar prestígio à custa dos outros. O obreiro de paz sabe que não basta dizer «não faço mal a ninguém», pois, como dizia Santo Alberto Hurtado: «Está muito bem não fazer o mal, mas está muito mal não fazer o bem» (Meditación radial, abril de 1944).

Construir a paz é um processo que nos congrega, estimulando a nossa criatividade para criar relações capazes de ver no meu vizinho, não um estranho ou um desconhecido, mas um filho desta terra.

Confiemo-nos à Virgem Imaculada que, do Cerro San Cristóbal, guarda e acompanha esta cidade. Que Ela nos ajude a viver e a desejar o espírito das Bem-aventuranças, para que, em todos os cantos desta cidade, se ouça como um sussurro: «Bem-aventurados os obreiros de paz, porque serão chamados filhos de Deus» (Mt 5, 9).

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VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO AO CHILE E PERU (15-22 DE JANEIRO DE 2018)

VISITA AO CENTRO PRISIONAL FEMININO

DISCURSO DO SANTO PADRE

Santiago, terça-feira, 16 de janeiro 2018

 

Queridas irmãs e irmãos!

Obrigado! Obrigado pelo que fizestes para me dar a oportunidade de visitar-vos; para mim, é importante partilhar este tempo convosco e poder estar mais perto de tantos irmãos nossos que hoje estão privados da liberdade. Obrigado, Ir. Nelly, pelas suas palavras, especialmente por testemunhar que a vida triunfa sempre sobre a morte. Sempre. Obrigado, Janeth, por teres tido a coragem de partilhares com todos nós as tuas aflições e aquele corajoso pedido de perdão. Quanto temos de aprender desta tua atitude cheia de coragem e humildade! São palavras tuas: «Pedimos perdão a todos aqueles que ferimos com os nossos delitos». Obrigado por nos lembrares esta atitude, sem a qual nós nos desumanizamos. Todos nós devemos pedir perdão, a começar por mim. Todos. Isto humaniza-nos: sem esta atitude de pedir perdão, perdemos a consciência de ter errado e de que somos chamados, duma maneira ou doutra, a recomeçar cada dia.

Neste momento, o coração faz-me recordar também a frase de Jesus: «Quem de vós estiver sem pecado, atire-lhe a primeira pedra» (Jo 8, 7). [O Papa apercebe-se que algumas reclusas citam a frase juntamente com ele] Vejo que a conheceis bem! E muitas vezes nas homilias, ao falar que todos temos dentro qualquer coisa menos boa – ou por fraqueza, ou porque caímos – e a temos bem escondida, sabeis o que digo? Digo às pessoas: «Todos somos pecadores, todos temos pecados. Não sei: aqui há alguém que não tenha pecados? Levante a mão…» Ninguém tem a coragem de levantar a mão! Jesus convida-nos a deixar a lógica simplicista de dividir a realidade em bons e maus, para entrar numa outra dinâmica capaz de assumir a fragilidade, os limites e também o pecado, para nos ajudar a seguir em frente.

Quando entrei, estavam à minha espera duas mães com os seus filhos. Assim me deram as boas-vindas, que bem se podem expressar em duas palavras: mãe e filhos.

Mãe: muitas de vós sois mães e sabeis o que significa gerar a vida. Soubestes «trazer» no vosso seio uma vida, e a destes à luz. A maternidade não é, e nunca será, um problema; é um presente, um dos presentes mais maravilhosos que podeis ter. Hoje encontrais-vos perante um desafio muito parecido: trata-se ainda de gerar vida. Hoje é-vos pedido que deis à luz o futuro; que o façais crescer, que o ajudeis a desenvolver-se. Não só para vós, mas também para os vossos filhos e para toda a sociedade. Vós, mulheres, tendes uma capacidade incrível de vos adaptardes às situações e seguir em frente. Hoje gostaria de fazer apelo à capacidade de gerar futuro. Capacidade de gerar futuro, que vive em cada uma de vós. Essa capacidade que vos permite lutar contra a multidão de determinismos «coisificantes» isto é, que transformam as pessoas em coisas, que acabam por matar a esperança. Nenhum de nós é uma coisa: todos somos pessoas e, como pessoas, temos esta dimensão da esperança. Não nos deixemos «coisificar». Não sou um número, não sou o recluso número tal; sou Tício ou Caio que trago dentro de mim a esperança e quero dar à luz a esperança.

Estar privadas da liberdade, como justamente nos dizia Janeth, não é sinónimo de perda de sonhos e esperanças. É verdade, custa muito, é doloroso, mas não significa perder a esperança. Não significa deixar de sonhar. Ser privadas de liberdade não é o mesmo que ser privadas de dignidade, não! Não é a mesma coisa. A dignidade não se toca, em ninguém. Zela-se, defende-se, nutre-se. Ninguém pode ser privado da dignidade. Vós estais privadas sim, mas da liberdade. Por isso, é necessário lutar contra todo o tipo de clichês, de rótulos que digam que não se pode mudar, ou que não vale a pena, ou que o resultado é sempre o mesmo. Como diz o tango argentino: «Não faças caso, continua assim, que tudo é igual, que lá no inferno nos reencontraremos…» Não, não é tudo igual. Não, queridas irmãs! Não é verdade que o resultado é sempre o mesmo. Todo o esforço que se fizer lutando por um amanhã melhor – embora muitas vezes pareça que cai em saco roto –, sempre dará fruto e será recompensado.

A segunda palavra é filhos: estes são força, são esperança, são estímulo. São a memória viva de que a vida se constrói olhando para a frente e não para trás. Hoje estais privadas da liberdade, mas isto não significa que esta situação seja definitiva. De maneira nenhuma. Levantai sempre o olhar para o horizonte, para a frente, para a reinserção na vida normal da sociedade. Uma pena sem futuro, uma condenação sem futuro não é uma condenação humana: é uma tortura. Qualquer pena, que uma pessoa esteja a descontar pagando uma dívida à sociedade, deve ter um horizonte, o horizonte de me inserir de novo e, por conseguinte, de me preparar para a reinserção. Isto, exigi-o, de vós mesmas e da sociedade. Levantai sempre o olhar para o horizonte, olhai sempre para a frente, para a reinserção na vida normal da sociedade. Por isso, louvo e convido a intensificar todos os esforços possíveis para que projetos como «Espacio Mandela» e «Fundación Mujer levántate» possam crescer e reforçar-se.

O nome desta Fundação faz-me recordar aquela passagem do Evangelho onde muitos zombavam de Jesus por dizer que a filha do chefe da sinagoga não estava morta, mas dormia. Zombavam d’Ele por isso. Face à zombaria, é paradigmática a atitude de Jesus: entrando onde estava a filha, tomou-a pela mão e disse-lhe: «Menina, sou Eu que te digo: levanta-te!» (Mc 5, 41). Todos a consideravam morta, Jesus não. Iniciativas deste tipo são sinal vivo de Jesus que entra na vida de cada um de nós – Ele que ultrapassa toda a zombaria, que não dá por perdida nenhuma batalha –, toma-nos pela mão e convida-nos a levantar. Como é bom haver cristãos e pessoas de boa vontade – sejam elas da crença que for, de qualquer opção religiosa ou mesmo não religiosa na vida, mas de boa vontade – que seguem os passos de Jesus, que têm a coragem de entrar e ser sinal daquela mão estendida que faz levantar! Eu te peço: levanta-te! Sempre… levantar-se.

Todos sabemos que muitas vezes, infelizmente, a pena da prisão se reduz sobretudo a um castigo, sem oferecer meios adequados para gerar processos. É aquilo que eu dizia a propósito da esperança: olhar para a frente, gerar processos de reinserção. Este deve ser o vosso sonho: a reinserção. E se for longo o caminho a percorrer, faz o melhor possível para que seja mais breve. Mas sempre reinserção. A sociedade tem a obrigação – a obrigação! – de vos reinserir a todas vós. Quando digo «reinserir a todas vós», quero dizer reinserir cada uma de vós, cada uma com um processo pessoal de reinserção: uma com um caminho a fazer, outra com outro; uma durante um tempo mais longo, outra mais breve; mas uma pessoa que está a caminho da reinserção. Isto deveis mantê-lo fixo na mente e deveis exigi-lo. E é isto que significa gerar um processo, ativar um processo. E espaços como estes, que promovem programas de habilitação laboral e acompanhamento para recompor vínculos, são sinal de esperança e de futuro. Demos a nossa ajuda, para que cresçam. A segurança pública não se deve reduzir apenas a medidas de maior controle, mas sobretudo deve ser construída com medidas de prevenção, com trabalho, educação e mais vida comunitária.

Com estes pensamentos, quero abençoar-vos a vós todas e também saudar os agentes de pastoral, os voluntários, o pessoal, nomeadamente os funcionários da Gendarmaria e as suas famílias. Rezo por vós. Tendes uma tarefa delicada e complexa e, por isso, espero que as autoridades possam assegurar-vos também as condições necessárias para realizardes o vosso trabalho com dignidade. Dignidade, que gera dignidade. A dignidade é contagiosa, contagia-se mais do que a gripe; a dignidade contagia-se. A dignidade gera dignidade.

A Maria – Ela é Mãe e, para Ela, somos filhos: vós sois suas filhas –, pedimos-Lhe que interceda por vós, por cada um dos vossos filhos, pelas pessoas que trazeis no coração e vos cubra com o seu manto. E peço-vos, por favor, que rezeis por mim, porque preciso. Obrigado!

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VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO AO CHILE E PERU (15-22 DE JANEIRO DE 2018)

ENCONTRO COM SACERDOTES E CONSAGRADOS

DISCURSO DO SANTO PADRE

Catedral de Santiago, terça-feira, 16 de janeiro de 2018

 

Queridos irmãos e irmãs, boa-tarde!

Estou feliz por participar neste encontro convosco. Gostei do modo como o Card. Ezzati vos apresentou: «Aqui estão... aqui estão as consagradas, os consagrados, os presbíteros, os diáconos permanentes, os seminaristas…» Aqui estão. Fez-me recordar o dia da nossa Ordenação ou Consagração em que, depois da apresentação, dissemos: «Aqui estou, Senhor, para fazer a vossa vontade». Neste encontro, queremos dizer ao Senhor: «Aqui estamos» para renovar o nosso «sim». Queremos renovar, juntos, a resposta à vocação que um dia alvoroçou o nosso coração.

E, para isso, creio que nos pode ajudar a passagem do Evangelho que escutamos, compartilhando três momentos de Pedro e da primeira comunidade: Pedro e a comunidade abatidos, Pedro e a comunidade tratados com misericórdia e Pedro e a comunidade transfigurados. Jogo com o binómio Pedro-comunidade, porque a experiência dos apóstolos tem sempre estes dois aspetos: pessoal e comunitário. Andam de mãos dadas, e não os podemos separar. É verdade que somos chamados individualmente, mas sempre para ser parte dum grupo maior. Não existe a «selfie vocacional», não existe. A vocação exige que a foto te seja tirada por outrem; que lhe havemos de fazer? As coisas estão assim.

1. Pedro abatido e a comunidade abatida

Sempre gostei do estilo dos Evangelhos que não adornam, não mitigam os acontecimentos, nem os pintam fazendo-os mais belos. Apresentam-nos a vida como é e não como deveria ser. O Evangelho não tem medo de nos mostrar os momentos difíceis, e até conflituosos, por que passaram os discípulos.

Reconstituamos a situação. Tinham morto Jesus; algumas mulheres diziam que estava vivo (cf. Lc 24, 22-24). Os discípulos, mesmo tendo visto Jesus ressuscitado, tão grande é o acontecimento que precisarão de tempo para compreender o sucedido. Diz Lucas: «Era tão grande a alegria que nem queriam acreditar». Precisavam de tempo para compreender aquilo que tinha acontecido. A compreensão chegar-lhes-á no Pentecostes, com o envio do Espírito Santo. A irrupção do Ressuscitado levará tempo a penetrar no coração dos seus.

Os discípulos voltam para a sua terra. Vão fazer o que sabiam: pescar. Não estavam todos, apenas alguns. Divididos, fragmentados? Não sabemos. O que nos diz a Escritura é que, aqueles que estavam, não pescaram nada. Têm as redes vazias.

Entretanto havia outro vazio que pesava inconscientemente sobre eles: a perplexidade e o turvamento pela morte do seu Mestre. Já não está, foi crucificado. Mas não acabou só Ele crucificado, os próprios discípulos foram joeirados, tendo a morte de Jesus posto em evidência um torvelinho de conflitos no coração dos seus amigos. Pedro renegara-O, Judas traíra-O, os restantes fugiram e esconderam-se. Ficou apenas um punhado de mulheres e o discípulo amado. O resto, foi-se. Questão de dias, e tudo ruiu. São as horas da perplexidade e do turvamento na vida do discípulo. Nos momentos «em que está levantada a poeira das perseguições, tribulações, dúvidas, etc. por causa de factos culturais e históricos, não é fácil atinar com o caminho a seguir. Há várias tentações que caraterizam estes momentos: discutir ideias, não prestar a devida atenção ao caso, fixar-se demasiado nos perseguidores... e – creio que a pior de todas as tentações – ficar a ruminar a desolação».[1] Sim, ficar a ruminar a desolação. Isto é o que sucedeu aos discípulos.

Como nos dizia o cardeal Ezzati, «a vida sacerdotal e consagrada, no Chile, atravessou e atravessa horas difíceis de turbulência e desafios sérios. Juntamente com a fidelidade da imensa maioria, cresceu também a cizânia do mal com as suas consequências de escândalo e deserção».

Momento de turbulência. Sei da dor causada pelos casos de abuso contra menores e sigo com atenção aquilo que estais a fazer para superar este grave e doloroso malefício. Dor pelo dano e sofrimento das vítimas e suas famílias, que viram traída a confiança que depunham nos ministros da Igreja. Dor pelo sofrimento das comunidades eclesiais, e dor também por vós, irmãos, que, além do desgaste pela entrega, experimentastes o dano que provoca a suspeita e a contestação, que pode ter insinuado – em alguns ou muitos – a dúvida, o medo e a difidência. Sei que, às vezes, sofrestes insultos no metropolitano ou caminhando pela rua; que, em muitos lugares, se está a «pagar caro» andar vestido de padre. Por isso, convido-vos a pedir a Deus que nos dê a lucidez de chamar a realidade pelo seu nome, a coragem de pedir perdão e a capacidade de aprender a escutar o que Ele nos está a dizer, e não ruminar a desolação.

Gostaria de acrescentar ainda outro aspeto importante. As nossas sociedades estão a mudar. O Chile de hoje é muito diferente do que conheci no tempo da minha juventude, quando me estava a formar. Estão a nascer novas e variadas formas culturais, que não se enquadram nos contornos habituais. E temos de reconhecer que, muitas vezes, não sabemos como nos inserir nestas novas situações. Frequentemente sonhamos com as «cebolas do Egito» e esquecemo-nos de que a terra prometida está à frente, e não atrás. Que a promessa é de ontem, mas diz respeito ao amanhã. E então podemos cair na tentação de nos fecharmos e isolarmos para defender as nossas posições que acabam por ser apenas bons monólogos. Podemos ser tentados a pensar que tudo está mal e, em vez de professar uma «boa nova», tudo o que professamos é apatia e deceção. Assim, fechamos os olhos perante os desafios pastorais, pensando que o Espírito não tenha nada a dizer. Deste modo esquecemo-nos de que o Evangelho é um caminho de conversão, mas não só «dos outros», também nossa.

Gostemos ou não, estamos convidados a enfrentar a realidade como ela se nos apresenta: a realidade pessoal, comunitária e social. As redes – dizem os discípulos – estão vazias, e podemos compreender os sentimentos que isso gera. Regressam a casa sem grandes aventuras para contar; regressam a casa de mãos vazias; regressam a casa, abatidos.

Que resta daqueles discípulos fortes, corajosos, vivazes, que se sentiam escolhidos tendo deixado tudo para seguir Jesus (cf. Mc 1, 16-20)? Que resta daqueles discípulos seguros de si, prontos a ir para a prisão e até dariam a vida pelo seu Mestre (cf. Lc 22, 33), que, para O defender, queriam mandar vir fogo sobre a terra (cf. Lc 9, 54); que, por Ele, desembainhariam a espada e combateriam (cf. Lc 22, 49-51)? Que resta do Pedro que repreendia o seu Mestre dizendo-Lhe como é que deveria orientar a sua vida (cf. Mc 8, 31-33), o seu programa de redenção? A desolação.

2. Pedro tratado com misericórdia e a comunidade tratada com misericórdia

É a hora da verdade, na vida da primeira comunidade. É a hora em que Pedro se confrontou com parte de si mesmo: a parte da sua verdade que muitas vezes não queria ver. Experimentou a sua limitação, a sua fragilidade, o seu ser pecador. Pedro, o instintivo, o chefe impulsivo e salvador, com uma boa dose de autossuficiência e um excesso de confiança em si mesmo e nas suas possibilidades, teve que se curvar à sua fraqueza e pecado. Era tão pecador como os outros, era tão carente como os outros, era tão frágil como os outros. Pedro dececionou Aquele a quem jurara proteção. Hora crucial na vida de Pedro.

Como discípulos, como Igreja, pode acontecer-nos o mesmo: há momentos em que somos confrontados, não com as nossas glórias, mas com a nossa fraqueza. Horas cruciais na vida dos discípulos, mas é também nessas horas que nasce o apóstolo. Deixemos o texto levar-nos pela mão.

«Depois de terem comido, Jesus perguntou a Simão Pedro: “Simão, filho de João, tu amas-Me mais do que estes?”» (Jo 21, 15).

Depois de comer, Jesus convida Pedro a passear um pouco e a única palavra é uma pergunta, uma pergunta de amor: Amas-Me? Jesus não censura nem condena. Tudo o que Ele quer fazer é salvar Pedro. Quer salvá-lo do perigo de ficar fechado no seu pecado, de ficar «a mastigar» a desolação, fruto da sua limitação; salvá-lo do perigo de desistir, por causa das suas limitações, de todas as coisas boas que vivera com Jesus. Quer salvá-lo do fechamento e do isolamento. Quer salvá-lo daquela atitude destrutiva que é o vitimizar-se ou, ao contrário, cair num «vale tudo o mesmo», acabando por fazer malograr qualquer compromisso no mais danoso relativismo. Quer libertá-lo de considerar quem se opõe a Ele como se fosse um inimigo, ou de não aceitar com serenidade as contradições e as críticas. Quer libertá-lo da tristeza e sobretudo do mau humor. Com esta pergunta, Jesus convida Pedro a auscultar o seu coração e aprender a discernir. Uma vez que «não era de Deus defender a verdade à custa da caridade, nem a caridade à custa da verdade, nem o equilíbrio à custa de ambas. É preciso discernir. Jesus quer evitar que Pedro se torne um veraz destruidor ou um caritativo mentiroso ou um perplexo paralisado»,[2] como pode acontecer connosco em tais situações.

Jesus interpelou Pedro sobre o seu amor e insistiu nisso até ele Lhe poder dar uma resposta realista: «Senhor, Tu sabes tudo; Tu bem sabes que eu sou deveras teu amigo» (Jo 21, 17). E, deste modo, Jesus confirma-o na missão. Assim o faz tornar-se definitivamente seu apóstolo.

O que é que fortalece Pedro como apóstolo? O que é que nos mantém a nós como apóstolos? Uma coisa só: fomos tratados com misericórdia (cf. 1 Tim 1, 12-16). Fomos tratados com misericórdia. «Não obstante os nossos pecados, os nossos limites, as nossas faltas; não obstante as nossas numerosas quedas, Jesus Cristo viu-nos, aproximou-Se, deu-nos a mão e teve misericórdia de nós. (…) Cada um de nós poderá recordar, pensando em todas as vezes que o Senhor o viu, que olhou para ele, que se aproximou dele e o tratou com misericórdia».[3] E convido-vos a fazer o mesmo. Não estamos aqui por ser melhores do que os outros. Não somos super-heróis que, do alto, descem para se encontrar com os «mortais». Antes, somos enviados com a consciência de ser homens e mulheres perdoados. E esta é a fonte da nossa alegria. Somos consagrados, pastores segundo o estilo de Jesus ferido, morto e ressuscitado. A pessoa consagrada – e, quando digo «consagrados», penso em quantos aqui estão – é alguém que encontra, nas suas feridas, os sinais da Ressurreição. É alguém que consegue ver, nas feridas do mundo, a força da Ressurreição. É alguém que, segundo o estilo de Jesus, não vai ao encontro dos seus irmãos com a censura e a condenação.

Jesus Cristo não Se apresenta, aos seus, sem chagas; foi precisamente a partir das suas chagas que Tomé pôde confessar a fé. Estamos convidados a não dissimular nem esconder as nossas chagas. Uma Igreja com as chagas é capaz de compreender as chagas do mundo atual e de assumi-las, sofrê-las, acompanhá-las e procurar saná-las. Uma Igreja com as chagas não se coloca no centro, não se considera perfeita, mas coloca no centro o único que pode sanar as feridas e que tem um nome: Jesus Cristo.

A consciência de ter chagas, liberta-nos. É verdade; liberta-nos de nos tornarmos autorreferenciais, de nos considerarmos superiores. Liberta-nos da tendência «prometeica de quem, no fundo, só confia nas suas próprias forças e se sente superior aos outros por cumprir determinadas normas ou por ser irredutivelmente fiel a um certo estilo católico próprio do passado».[4]

Em Jesus, as nossas chagas ficam ressuscitadas. Tornam-nos solidários; ajudam-nos a derrubar os muros que nos encerram numa atitude elitista, incitando-nos a construir pontes e ir ao encontro de tantos sedentos do mesmo amor misericordioso que só Cristo nos pode dar. «Quantas vezes sonhamos planos apostólicos expansionistas, meticulosos e bem traçados, típicos de generais derrotados! Assim negamos a nossa história de Igreja, que é gloriosa por ser história de sacrifícios, de esperança, de luta diária, de vida gasta no serviço, de constância no trabalho fadigoso, porque todo o trabalho é “suor do nosso rosto”».[5] Vejo, com certa preocupação, que há comunidades que vivem acometidas pela ânsia de constar no cartaz, ocupar espaços, aparecer e se mostrar, mais do que pela vontade de arregaçar as mangas e sair para tocar a dolorosa realidade do nosso povo fiel.

Como nos interpela a reflexão deste Santo chileno, que advertia: «Por isso, serão métodos falsos todos os que são impostos pela uniformidade; todos os que pretendem encaminhar-nos para Deus, fazendo-nos esquecer os nossos irmãos; todos os que nos levam a fechar os olhos ao universo, em vez de nos ensinar a abri-los para elevar tudo ao Criador de todas as coisas; todos os que nos fazem egoístas e nos dobram sobre nós mesmos».[6]

O povo de Deus não espera nem precisa de nós como super-heróis, espera pastores, homens e mulheres consagrados, que conheçam a compaixão, que saibam estender uma mão, que saibam parar junto de quem está caído e, como Jesus, ajudem a sair desse círculo vicioso de «mastigar» a desolação que envenena a alma.

3. Pedro transfigurado e a comunidade transfigurada

Jesus convida Pedro a discernir e, assim, começam a ganhar força muitos acontecimentos da vida de Pedro, como o gesto profético do lava-pés. Pedro, que resistira a deixar-se lavar os pés, começava a compreender que a verdadeira grandeza passa por se fazer pequenino e servidor.[7]

Como é grande a pedagogia de nosso Senhor! Do gesto profético de Jesus à Igreja profética que, lavada do seu pecado, não tem medo de sair para servir uma humanidade ferida.

Pedro experimentou, na sua carne, a ferida não só do pecado, mas também das suas próprias limitações e fraquezas. Mas descobriu em Jesus que as suas feridas podem ser caminho de Ressurreição. Conhecer Pedro abatido para conhecer Pedro transfigurado é o convite a deixar de ser uma Igreja de abatidos desolados para passar a uma Igreja servidora de tantos abatidos que convivem ao nosso lado. Uma Igreja capaz de se colocar ao serviço do seu Senhor no faminto, no preso, no sedento, no desalojado, no nu, no doente... (cf. Mt 25, 35). Um serviço que não se identifica com o assistencialismo nem o paternalismo, mas com a conversão do coração. O problema não está em dar de comer ao pobre, vestir o nu, assistir o doente, mas em considerar que o pobre, o nu, o doente, o preso, o desalojado têm a dignidade de se sentar às nossas mesas, sentir-se «em casa» entre nós, sentir-se família. Este é o sinal de que o Reino de Deus está no meio de nós. É o sinal duma Igreja que foi ferida pelo seu pecado, foi cumulada de misericórdia pelo seu Senhor, e foi tornada profética por vocação.

Renovar a profecia é renovar o nosso compromisso de não esperar por um mundo ideal, uma comunidade ideal, um discípulo ideal para viver ou para evangelizar, mas criar as condições para que cada pessoa abatida possa encontrar-se com Jesus. Não se amam as situações nem as comunidades ideais, amam-se as pessoas.

O reconhecimento sincero, contrito e orante das nossas limitações, longe de nos separar de nosso Senhor, permite-nos retornar a Jesus, sabendo que, «com a sua novidade, Ele pode sempre renovar a nossa vida e a nossa comunidade, e a proposta cristã, ainda que atravesse períodos obscuros e fraquezas eclesiais, nunca envelhece. (…) Sempre que procuramos voltar à fonte e recuperar o frescor original do Evangelho, despontam novas estradas, métodos criativos, outras formas de expressão, sinais mais eloquentes, palavras cheias de renovado significado para o mundo atual».[8] Como nos faz bem a todos deixar que Jesus nos renove o coração!

Ao início deste encontro, disse-vos que vínhamos renovar o nosso «sim», com garra, com paixão. Queremos renovar o nosso «sim», mas um sim realista, porque apoiado no olhar de Jesus. Convido-vos, quando voltardes para casa, a preparar no vosso coração uma espécie de testamento espiritual, no estilo do cardeal Raúl Silva Henríquez expresso nesta linda oração que começa dizendo:

«A Igreja que eu amo é a Santa Igreja de todos os dias... a tua, a minha, a Santa Igreja de todos os dias...

… Jesus, o Evangelho, o pão, a Eucaristia, o Corpo de Cristo humilde em cada dia. Com os rostos dos pobres e os rostos de homens e mulheres que cantavam, que lutavam, que sofriam. A Santa Igreja de todos os dias».

Pergunto-te: Como é a Igreja que tu amas? Amas esta Igreja ferida, que encontra vida nas chagas de Jesus?

Obrigado por este encontro. Obrigado pela oportunidade de renovar o «sim» convosco. A Virgem do Carmo vos cubra com o seu manto.

Por favor, não vos esqueçais de rezar por mim. Obrigado!

 

[1] Jorge M. Bergoglio, Las cartas de la tribulación (Ed. Diego de Torres – Buenos Aires 1987), 9.

[2] Ibidem.

[3] Mensagem vídeo ao CELAM, por ocasião do Jubileu extraordinário da Misericórdia no Continente Americano (27/VIII/2016).

[4] Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium, 94.

[5] Ibid., 96.

[6] Santo Alberto Hurtado, Discurso aos jovens da Ação Católica (1943).

[7] «Se alguém quiser ser o primeiro, há de ser o último de todos e o servo de todos» (Mc 9, 35).

[8] Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium, 11.

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VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO AO CHILE E PERU (15-22 DE JANEIRO DE 2018)

ENCONTRO COM OS BISPOS

DISCURSO DO SANTO PADRE

Santiago - Sacristia da Catedral, terça-feira, 16 de janeiro de 2018

 Queridos irmãos!

Agradeço as palavras que o presidente da Conferência Episcopal me dirigiu em nome de todos vós.

Em primeiro lugar, quero saudar D. Benardino Piñera Carvallo, que celebra, este ano, o seu sexagésimo aniversário de episcopado (é o bispo mais idoso do mundo, tanto na idade como nos anos de episcopado) e viveu quatro sessões do Concílio Vaticano II. Maravilhosa memória vivente!

Em breve, completar-se-á um ano da vossa visita ad limina; agora tocou a mim vir visitar-vos e fico feliz por este encontro acontecer depois de ter estado com o «mundo consagrado»; pois uma de nossas tarefas principais consiste precisamente em estar perto das nossas pessoas consagradas, dos nossos sacerdotes. Se o pastor se dispersa, também as ovelhas se dispersarão e ficarão à mercê de qualquer lobo. Irmãos, a paternidade do bispo com os seus sacerdotes, com o seu presbitério! Uma paternidade que não é paternalismo nem abuso de autoridade. Eis um dom que deveis pedir: estar perto dos vossos padres, com o estilo de São José. Uma paternidade que ajuda a crescer e a desenvolver os carismas que o Espírito quis derramar nos vossos respetivos presbitérios.

Sei que concordamos em demorar pouco tempo, porque, nos nossos colóquios das duas longas sessões da visita ad limina, já tocamos muitos temas. Por isso, nesta «saudação», gostaria de retomar qualquer ponto do encontro que tivemos em Roma e poder-se-ia resumir na frase seguinte: a consciência de ser povo, de ser povo de Deus.

Um dos problemas, que enfrentam atualmente as nossas sociedades, é o sentimento de orfandade, ou seja, sentir que não pertencem a ninguém. Este sentir «pós-moderno» pode penetrar em nós e no nosso clero; então começamos a pensar que não pertencemos a ninguém, esquecemo-nos que somos parte do santo povo fiel de Deus e que a Igreja não é, e nunca será, uma elite de pessoas consagradas, sacerdotes ou bispos. Não podemos sustentar a nossa vida, a nossa vocação ou ministério, sem esta consciência de ser povo. Esquecermo-nos disto – como afirmei à Comissão para a América Latina – «comporta vários riscos e deformações na nossa experiência, quer pessoal quer comunitária, do ministério que a Igreja nos confiou».[1] A falta de consciência de pertencer ao povo fiel de Deus como servidores, e não como patrões, pode-nos levar a uma das tentações que mais dano causa ao dinamismo missionário, que somos chamados a promover: o clericalismo, que é uma caricatura da vocação recebida.

A falta de consciência do facto que a missão é de toda a Igreja, e não do padre ou do bispo, limita o horizonte e – o que é pior – coarta todas as iniciativas que o Espírito pode suscitar no meio de nós. Digamo-lo claramente: os leigos não são os nossos servos, nem os nossos empregados. Não precisam de repetir, como «papagaios», o que dizemos. «O clericalismo longe de dar impulso às diferentes contribuições e propostas, apaga pouco a pouco o fogo profético do qual a Igreja inteira está chamada a dar testemunho no coração dos seus povos. O clericalismo esquece que a visibilidade e a sacramentalidade da Igreja pertencem a todo o povo fiel de Deus (cf. Lumen gentium, 9-14) e não só a poucos eleitos e iluminados».[2]

Por favor, vigiemos contra esta tentação, especialmente nos Seminários e em todo o processo formativo. Confesso-vos que me preocupa a formação dos seminaristas: que sejam pastores ao serviço do povo de Deus; como deve ser um pastor, com a doutrina, com a disciplina, com os Sacramentos, com a proximidade, com as obras de caridade, mas que tenham esta consciência de povo. Os Seminários devem pôr o acento no facto que os futuros sacerdotes sejam capazes de servir o santo povo fiel de Deus, reconhecendo a diversidade de culturas e renunciando à tentação de qualquer forma de clericalismo. O sacerdote é ministro de Jesus Cristo, o protagonista que Se torna presente em todo o povo de Deus. Os sacerdotes de amanhã devem formar-se olhando para o amanhã: o seu ministério desenrolar-se-á num mundo secularizado, pelo que se nos exige, a nós pastores, discernir como prepará-los para realizar a sua missão nesse cenário concreto e não nos nossos «mundos ou situações ideais». Uma missão que se realiza em união fraterna com todo o povo de Deus. Lado a lado, impelindo e incentivando o laicado num clima de discernimento e sinodalidade, duas caraterísticas essenciais do sacerdote de amanhã. Não ao clericalismo e a mundos ideais, que só entram nos nossos esquemas, mas que não tocam a vida de ninguém.

Para isso, pedir ao Espírito Santo o dom de sonhar; por favor, nunca deixeis de sonhar, sonhar e trabalhar por uma opção missionária e profética que seja capaz de transformar tudo, para que os costumes, os estilos, os horários, a linguagem e toda a estrutura eclesial se tornem um instrumento mais adequado para a evangelização do Chile do que para uma auto-preservação eclesiástica. Não tenhamos medo de nos despojar daquilo que nos afasta do mandato missionário.[3]

Irmãos, era isto que vos queria dizer resumindo as coisas principais que abordamos no decurso das visitas ad limina. Encomendemo-nos à proteção de Maria, Mãe do Chile. Rezemos juntos pelos nossos presbitérios, pelas nossas pessoas consagradas; rezemos pelo santo povo fiel de Deus, de que fazemos parte. Obrigado!

 

[1] Carta ao Cardeal Marc Ouellet, Presidente da Pontifícia Comissão para a América Latina (19/III/2016).

[2] Ibidem.

[3] Cf. Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium, 27.

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VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO AO CHILE E PERU (15-22 DE JANEIRO DE 2018)

MISSA PELO PROGRESSO DOS POVOS

HOMILIA DO SANTO PADRE

Temuco - Aeródromo de Maquehue, quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

 «Mari, Mari [bom dia]».

«Küme tünngün ta niemün [A paz esteja convosco!]» (Lc 24, 36).

Dou graças a Deus por me permitir visitar esta parte linda do nosso continente, a Araucania: terra abençoada pelo Criador com a fertilidade de imensos campos verdes, com florestas cheias de imponentes araucarias – o quinto elogio de Gabriela Mistral a esta terra chilena[1]–, seus majestosos vulcões cobertos de neve, seus lagos e rios cheios de vida. Esta paisagem eleva-nos a Deus, sendo fácil ver a sua mão em cada criatura. Muitas gerações de homens e mulheres amaram, e amam, este solo com ciosa gratidão. E quero deter-me aqui para saudar de forma especial os membros do povo Mapuche, bem como os outros povos indígenas que vivem nestas terras do sul: Rapanui (Ilha de Páscoa), Aymara, Quechua e Atacama, e muitos outros.

Esta terra, se a virmos com olhos de turista, deixar-nos-á extasiados, mas depois continuaremos a nossa estrada como antes, recordando-nos das lindas paisagens que vimos; se, pelo contrário, nos aproximarmos do solo, ouvi-lo-emos cantar: «Arauco tem uma pena que não posso calar, são injustiças de séculos que todos veem aplicar».[2]

É neste contexto de ação de graças por esta terra e pelo seu povo, mas também de tristeza e dor, que celebramos a Eucaristia. E fazemo-lo neste aeródromo de Maquehue, onde se verificaram graves violações de direitos humanos. Oferecemos esta celebração por todas as pessoas que sofreram e foram mortas e pelas que diariamente carregam aos ombros o peso de tantas injustiças. E, lembrando estas coisas, fiquemos uns momentos em silêncio a pensar em tanto sofrimento e tanta injustiça. O sacrifício de Jesus na cruz está repleto de todo o pecado e do sofrimento dos nossos povos, um sofrimento a ser resgatado.

No Evangelho que ouvimos, Jesus pede ao Pai que «todos sejam um só» (Jo 17, 21). Numa hora crucial da sua vida, detém-Se a pedir a unidade. O seu coração sabe que uma das piores ameaças que atinge, e atingirá, o seu povo e toda a humanidade será a divisão e o conflito, a subjugação de uns pelos outros. Quantas lágrimas derramadas! Hoje queremos agarrar-nos a esta oração de Jesus, queremos entrar com Ele neste horto de dor, também com as nossas dores, para pedir ao Pai com Jesus: que também nós sejamos um só. Não permitais que nos vença o conflito nem a divisão.

Esta unidade, implorada por Jesus, é um dom que devemos pedir insistentemente pelo bem da nossa terra e seus filhos. E é necessário estar atento a eventuais tentações que possam aparecer e «contaminar pela raiz» este dom com que Deus nos quer presentear e com o qual nos convida a ser autênticos protagonistas da história. Quais são estas tentações? Uma é a dos falsos sinónimos.

1. Os falsos sinónimos

Uma das principais tentações a enfrentar é confundir unidade com uniformidade. Jesus não pede a seu Pai que todos sejam iguais, idênticos; pois a unidade não nasce, nem nascerá, de neutralizar ou silenciar as diferenças. A unidade não é uma simulação de integração forçada nem de marginalização harmonizadora. A riqueza duma terra nasce precisamente do facto de cada parte saber partilhar a sua sabedoria com as outras. Não é, nem será, uma uniformidade asfixiante que normalmente nasce do predomínio e da força do mais forte, nem uma separação que não reconheça a bondade dos outros. A unidade pedida e oferecida por Jesus reconhece o que cada povo, cada cultura são convidados a oferecer a esta terra abençoada. A unidade é uma diversidade reconciliada, porque não tolera que, em seu nome, se legitimem as injustiças pessoais ou comunitárias. Precisamos da riqueza que cada povo pode oferecer, pondo de lado a lógica de pensar que há culturas superiores e culturas inferiores. Um belo chamal [manto] requer tecelões que conheçam a arte de harmonizar os diferentes materiais e cores; que saibam dar tempo a cada coisa e a cada fase. Poder-se-á imitar de modo industrial, mas todos reconheceremos que é uma peça de roupa confecionada sinteticamente. A arte da unidade precisa e requer artesãos autênticos que saibam harmonizar as diferenças nos «laboratórios» das aldeias, das estradas, das praças e das várias paisagens. A unidade não é uma arte de escrivaninha, nem é feita apenas de documentos; é uma arte de escuta e reconhecimento. Nisto se enraíza a sua beleza e também a sua resistência ao desgaste do tempo e às inclemências que terá de enfrentar.

A unidade,