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Festa da Natividade de Maria e o Renascimento da Natureza Humana
08/09/2018
Celebramos neste 8 de setembro a festa do nascimento da virgem Maria na Igreja católica. Apesar de que as fontes primitivas aparecem sempre muito discretas e sóbrias acerca desta solenidade é tranquilamente plausível admitir uma profunda piedade mariana difundida já nas comunidades cristãs desde ao menos santo Inácio de Antioquia (+117)[1]; em Roma com são Justino (+165)[2]; na Gália com santo Irineu[3] (+202) e por conseguinte, em autores dos inícios do III século como Hipólito de Roma, Orígenes, Tertuliano, fazendo-nos ver estes grandes autores uma presença constante sob o título de “Virgem Maria” em muitas de suas obras. Maria será sempre encontrada na primitiva literatura cristã para dentro daquilo que havia de mais importante na elaboração do dogma da fé, definido pela grande Igreja como: regula fidei, símbolom, Traditio ou reditium fidei, traduzindo e exemplificando, em nenhuma das primitivas elaborações do credo apostólico, do símbolo dos apóstolos, seja nas Igrejas da Ásia (Antioquia e Jerusalém), seja no ocidente cristão (Roma, Lyon e Cartago), seja em Alexandria, é ausente o artigo, “nasceu da virgem Maria”. E este notório artigo da fé, obviamente com nuances teológicos importantíssimos de defender “verdadeiramente a encarnação do Verbo” frente às ilusões docetistas e gnosticistas, revelará também, para dentro da Igreja, isto é, na vida cotidiana e litúrgica das comunidades cristãs primitivas, já uma inicial e não menos profunda piedade em torno da mãe de Deus. O tema sobre Maria na antiguidade aparecerá de forma mais incisiva junto aos debates cristológicos dos IV e V séculos no oriente. Será preliminar à definição dogmática de Calcedônia em 451. Neste contexto dois olhares teológicos entraram em séria e profunda discussão. Duas formas de aproximação do mistério do “Verbo encarnado” passavam a defender o seu ponto de vista, sua tradição teológica. De um lado os “Alexandrinos” que sob a batuta de são Cirílo de Alexandria propunham que após a encarnação do Verbo divino no seio de Maria, isto é, após a união do Verbo com a natureza humana (ventre de Maria), teríamos a pessoa de Jesus, nas duas naturezas verdadeiras, humana e divina. São Cirilo defendeu não sem alguns equívocos, o que mais tarde seria definido no concílio de Calcedônia (451) pela Igreja católica: Jesus Cristo, Verdadeiro homem e verdadeiro Deus, uma única pessoa em duas distintas e reais naturezas[4]. Do outro lado do debate, na capital romana do oriente, Constantinopla, o Patriarca Nestório, apresenta uma tese sobre a encarnação do Verbo, sob a influência de um olhar teológico mais Asiático, como lhe era próprio. Acentuando a dimensão humana nesta “união” e com a intenção de salvaguardar a dimensão divina após a “união-encarnação”, acabou por fim, atenuando a presença do Verbo de Deus na encarnação. Nestório por força de um racionalismo que não podia admitir que o “Logos Divino” pudesse nascer no ventre de uma mulher, concluiu, que Maria era sim a mãe de Jesus (homem) e não do Verbo de Deus. Para nós interessa-nos perceber no tocante ao conturbado e “espinhoso” debate preliminar de Calcedônia entre os dois grandes patriarcas, Cirilo e Nestório, o lugar teológico e cúltico de Maria. Obviamente a posição de são Cirilo é assumida e desenvolvida no Concílio de Éfeso (431), definindo o grande dogma Mariano da “Théotokos”, isto é com o título de “Mãe de Deus” e rejeitando a tese de Nestório, na qual Maria seria apenas a “mãe do homem Jesus”. No entanto, será apenas por volta do VII século que o culto litúrgico acerca da “Natividade de Maria” passa a ser normatizado na Igreja Católica. Não que antes já não estivesse difundida nas comunidades cristãs semelhante piedade sobre Maria. Será a partir do teólogo siríaco são João Damasceno que chega às mãos dos féis católicos belíssimas homilias sobre a “Mãe de Deus”: uma sobre a natividade de Maria, chamada: “Discurso do humilde monge e padre João Damasceno para o nascimento de Nossa Senhora santíssima, Mãe de Deus e sempre virgem Maria”, e ainda outras três sobre a “Dormição de Maria”. O discurso homilético sobre a natividade de Maria, foi pronunciado em ocasião da festividade homônima judaica junto às portas das ovelhas, ou da piscina, onde segundo uma apócrifa tradição, se encontrava a casa de Joaquim e Ana, pais de Nossa Senhora. Já no final do V século em Jerusalém celebrava-se em 15 de agosto a festa da “memória” de Maria e que um século após passou a chamar-se “Festa da Dormição”. Nesta homilia João Damasceno de cunho eminentemente mariano, percebe-se que no centro dos seus discursos aparecem também: a teologia Trinitária com seu glorioso desenrolar cristológico sobre a “Encarnação do Verbo”, assim todos os discursos tomados sobre a Virgem Maria não fogem a necessária meditação sobre Cristo. Não serão jamais ideias soltas sobre a mãe do Senhor, mas sempre a relacionando com o mistério do Verbo encarnado. Das leituras homiléticas de Damasceno si percebe claramente uma singular importância atribuída a virgem, em função da encarnação e da salvação: Maria é autora da dimensão humana, terrena do Logos encarnado e, em quanto tal, é componente insubstituível e central no designo salvífico do Pai. Por isso que repetidamente nas homilias proferidas pelo teólogo, a figura de Maria oferece ao autor a oportunidade de refletir e meditar com linguagem amorosa de estima e respeito pelos Padres e antigos concílios, acerca do mistério da encarnação, vértice de sua teologia: “Nós que fomos salvos a pé enxutos e atravessamos o mar salgado da impiedade, elevamos a Mãe de Deus o canto do Exôdo (...) Amém, é morta a fonte de vida, a Mãe do meu Senhor. Necessitava, que a criatura composta de terra retornasse a terra e subisse assim ao céu, recebendo a terra, depois de ter deixado o corpo, uma vida toda integra” (Sob a Dormição;3).[5] A glória de Maria e seus méritos em ordem da salvação, sugeriu a João Damasceno com certa frequência estabelecer um nexo entre Eva e Maria. Seguindo obviamente a tradição de Justino, Irineu, Orígenes e tantos outros autores antigos, destaca a grande vantagem de Maria. Ela é a nova Eva, é ela que favorece a salvação dos homens e também reabilita e ilustra todas as mulheres que a antiga progenitora havia “difamado”. Assim como são Paulo, Cristo será o novo homem, o novo Adão, no entanto com uma novidade teológica impressionante: “Filhinha digna de Deus, beleza da natureza humana, reabilita a progenitora Eva! Graças ao teu nascimento, de fato, aquele que caiu foi elevado. Ó filhinha santíssima, honra das mulheres! Se a primeira Eva (mulher), se maculou de transgressão e por isso entrou no mundo a morte por ter servido a serpente (...) Maria ao invés, fazendo-se serva da vontade divina, desmentiu a cilada antiga da serpente, introduzindo no mundo a imortalidade” (Sobre a Natividade de Maria, 7)[6]. Também nas homilias marianas aparecem singulares elementos exegéticos próprios da leitura alegórica patrística. Em particular, nas homilias sobre a Virgem, o velho testamento contém ao seu juízo muitos “tipos” da figura e da função de Maria. A mãe do Salvador é prefigurada na Arca de Noé, na sarça ardente, nas tábuas da lei, na arca da aliança e outras tipologias cristológicas: “A arca te prefigurou, quando salvou a semente da segunda criação, tu gerou o Cristo, salvação do mundo (...) o ramo te prefigurou, as tábuas escritas por Deus te predeterminaram, a arca da lei te preanunciou (...) (In Dormizione, 8). “Não era a ti que prefigurava a sarça que mostrava um fogo (...) sempre ardente e símbolo do fogo divino que em ti habitou” (Idem)[7]. Em um dos passos mais belos do texto de João Damasceno sobre a Natividade da Virgem Maria, o autor estabelece uma relação de oposição assumida entre a natureza humana e natureza divina com grande originalidade: Define Maria como a “filha de Adão e mãe de Deus”. Vejamos ai o tão grande paradoxo que oferece o mistério da encarnação e não menos sobre Maria. O fruto do seu Ventre, Jesus Cristo, é aquele que “alinha ou integra” os abismos antes existentes entre “natura e gratia”; humano e divino, e redenção: “(...) dela sem a mão humana, tornou-se digna de se “destacar” a pedra angular, Cristo única pessoa (Calcedônia), que uniu o que antes estava dividido, divindade e humanidade, anjos e homens, pagãos e Israel segundo a carne em um só Israel espiritual” (In Nativitatem Mariam, 6). Para João Damasceno em Maria e em sua carne desde sempre integra e pura: “Joaquim e Ana casal castíssimo como pombas espirituais! Respeitando a lei da natureza, da castidade, fostes dignos de algo sobre a natureza: Gerastes no mundo, uma Mãe de Deus sem marido. Depois de terem vivido uma piedade e pureza na natureza humana, gerastes uma filha que está acima dos anjos e que reina agora sobre os anjos” (In Nativitatem, 6). O teólogo, diz que a natureza humana foi vencida pela graça: “a natureza de fato foi vencida pela graça. Quando a Virgem Maria estava para nascer de Ana, a natureza não ousou antecipar os frutos da graça (...) Devia de fato nascer primogênita aquela que gerou o primogênito de toda a criação, na qual todas as coisas existem” (In Nativitatem, 2). (...) Ó santo casal Joaquim e Ana! Toda a criação vos é devedora. Por vosso meio, ofertaram ao criador um dom superior a todos os dons, uma mãe santa, única digna daquele que lhe criou” (Idem 2.2)! O difícil pensamento de Damasceno está posto na ordem da Graça divina e não tanto no horizonte da vontade humana. Para nosso teólogo o que é “maior” supera o que é “menor”: assim a graça considerando toda a possibilidade de liberdades humanas da vontade, lhe é superior, por isso “vence” na ordem da salvação. Obviamente que isto veio a se realizar de forma plena naquela que era a “cheia da Graça”, Maria mãe do Senhor. Sabemos que toda a espiritualidade mariana progrediu e amadureceu com o passar do tempo. Aqui estamos no seu “limiar”, mas também percebemos como esta inicial devoção ou culto esteve impregnado do mistério que lhe funda: Cristo e sua encarnação. João Damasceno e todos outros teólogos que o anteciparam na ordem cronológica a respeito de uma reflexão teológica sobre a Virgem foram na realidade “porta-vozes” ou “divulgadores” de uma piedade ou culto presente nas primeiras comunidades cristãs. Foram importantíssimos do ponto de vista teológico tornando clara e livre dos erros dogmáticos, salvaguardando o mistério sobre Cristo intacto e inviolável tal qual Maria guardou em seu seio. Mas também toda esta primordial meditação sobre o lugar da Virgem da ordem da salvação, demonstram algo muito essencial: Já havia desde sempre, nas mais antigas comunidades cristãs um “olhar devoto” à Virgem Maria, uma piedade incipiente, mas nunca ausente. Que a “ulterior” teologia sobre Maria, continue relacionando sua missão, lugar, como fora feito uma vez nos inícios da Igreja, para dentro do Corpo Místico de Cristo, onde ela, continua sendo seu mais belo Ícone, escrito pelo próprio Deus. [1]Padres Apostólicos, Inácio de Antioquia, Paulus, 1993. [2]Justino Martir, In Padres Apologistas, Apologia, Paulus, 1995. [3]Irineu de Lião, Adversus Haeresis, Paulus, 1995. [4]Para o debate cristológico sobre o Concílio de Calcedônia: Dicionário de Literatura e antiguidades Patrísticas. [5]João Damasceno, Sobre a Dormição de Maria, Città Nuova, 1980. [6]Idem, In Nativitatem Mariam, p. 167. [7]Idem, p. 183. Pe. César Augusto Dias Garcia Fonte: Arquidiocese de Pelotas