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Dia Mundial do Migrante e do Refugiado: A Kenosis como caminho para construção da Paz
21/09/2021

Na passagem do Dia Mundial do Migrante e do Refugiado, no próximo 26 de setembro, talvez seja preciso pensar e ressignificar toda essa crise humanitária pela qual passa o mundo, cujo episódio mais recente, no Afeganistão, deixa um rastro de perplexidade. O padre Raphael Colvara Pinto, atualmente atendendo a comunidade de língua portuguesa na Igreja de St. Charles, na Arquidiocese de Boston, Estados Unidos, estudioso do impacto dos processos migratórios, considera que “deve haver uma preocupação em entender esses fenômenos de tanta estupidez e brutalidade no mundo em que nós vivemos”.

 

            Para ele, todos sabem que existem alguns grupos extremistas religiosos, mas também é preciso perceber que a cultura ocidental não é menos violenta do que isso. E, por isso, talvez esses grupos religiosos possam ser entendidos como o efeito colateral das ações desenvolvidas no Ocidente. Porém, o mais importante nesse momento, propõe o padre, é pensar a Kenosis de Jesus como um método de mediação, olhando para Ele que é o príncipe da paz. “É uma inspiração para criar uma agenda positiva de construção da paz e da solidariedade, ao invés de incitar o ódio e a violência, principalmente porque as experiências religiosas são complexas e ambíguas”, reflete o pároco, acreditando que a Kenosis de Jesus pode nos ajudar a respeitar e conviver em um mundo plural.

 

            Esse convite também está na mensagem do Papa Francisco, emitida na Festa dos Apóstolos São Filipe e São Tiago, em 3 de maio desse ano, para o 107º Dia Mundial do Migrante e do Refugiado, dedicado pela Igreja todo último domingo do mês de setembro. Para o Papa, todos devem “rumar a um nós cada vez maior”. Ele frisa que este horizonte encontra-se no próprio projeto criador de Deus e que, portanto, a história da salvação vê um nós no princípio e um nós no fim e, no centro, o mistério de Cristo, morto e ressuscitado «para que todos sejam um só» (Jo 17, 21). Ele dirigiu um duplo apelo aos fiéis católicos e a todos os homens e mulheres da terra, afirmando que todos estão no mesmo barco e são chamados a empenharem-se para que não existam mais muros, nem existam mais os outros, mas só um nós, do tamanho da humanidade inteira.

 

            Para Francisco, no encontro com a diversidade dos estrangeiros, dos migrantes, dos refugiados e no diálogo intercultural que daí pode brotar, é dada a oportunidade aos católicos de crescerem como Igreja e a comprometerem-se para que a Igreja se torne cada vez mais inclusiva, considerando que os fluxos migratórios contemporâneos constituem uma nova “fronteira” missionária”. Já para todos os homens e mulheres da terra, o papa apelou a caminharem juntos rumo a um nós cada vez maior, a recomporem a família humana, a fim de construirmos em conjunto o nosso futuro de justiça e paz, tendo o cuidado de ninguém ficar excluído.

 

A Kenosis de Jesus – E é justamente para compor esse caminho de um mundo plural de justiça e paz, diante da complexidade e da crescente violência e escalada do terrorismo mundial, que o padre Raphael, à luz do mistério da Kenosis de Jesus, lembra que o filho de Deus veio propor uma nova ordem, o Reino (basileia). Para ele, suas implicações políticas podem ser lidas como uma resposta não violenta à opressão romana: “Bem- aventurados os que promovem a paz” (Mt 5, 9). E lembra da mensagem revolucionária considerada a “carta magna” do Evangelho: “Felizes quando por minha causa vos insultarem, perseguirem e, mentindo, disserem todo o tipo de mal contra vós” (Mt 5, 11). O texto segue contradizendo o preceito judaico, “olho por olho, dente por dente”: “Eu, porém, lhes digo (...) se alguém lhe bater na face direita, ofereça-lhe também a outra” (Mt 5, 38-39).

 

Embora a morte e ressurreição de Jesus não ocultem as contradições e ambiguidades, para o padre Raphael, são parte essencial de seu ministério, um convite a assumir a marginalidade voluntária como Ele abraçou: “Vós sabeis que os chefes das nações as oprimem e os grandes a tiranizam, mas entre vós, não deve ser assim: quem quiser ser grande seja o vosso servo” (Mc 10, 42). “Sua Kenosis não procura derrubar ou dominar, mas, sim, fala de libertação e solidariedade. O Deus revelado em Jesus tornou-se uma realidade perturbadora, pois sua morte infame não foi um acidente ou um erro, mas foi uma execução política provocada pelo rompimento da ordem social”, explica.

 

E ainda que o sofrimento de Cristo seja o sofrimento do próprio Deus, padre Raphael pondera que isto não significou a morte de Deus, mas o começo de seu Espírito vivificante de amor. “A cruz configurou-se como lugar do amor de Cristo pelo mundo, trazendo o lugar de Deus na história, que continua a sofrer ainda hoje nos mais variados contextos violentos”. Para ele, o grito de Jesus na cruz serve para chamar aqueles que ainda não encontraram a sua voz, as vítimas das quais foram roubadas as suas dignidades, servindo, inclusive, para uma compreensão da paz que abraça a nossa vulnerabilidade para nos ensinar que isto não é tão somente uma metáfora descritiva, mas uma pedagogia que integra e escolhe o diferente: “Amai-vos uns aos outros como eu vos amei” (Jo 13: 34).

 

Ele lembra que Jesus pediu aos seus discípulos para ficarem vigilantes em seus discursos religiosos, não politizando posturas violentas: Guarde a espada! As singularidades das experiências nem sempre podem ser harmonizadas, mas nem por isso precisam ser combatidas. Finalmente, o objetivo de viver juntos: “para que que todos sejam um, como tu, Pai, estás em mim e eu em ti para que também eles estejam em nós” (Jo 17, 21) revela a capacidade colaborativa da religião de religar os diferentes aspectos da vida, que vai além de um simples reconhecimento do pluralismo, mas envolve as pessoas em um diálogo profundo, que oportuniza um crescimento recíproco.

 

Vincular o terrorismo à religião não afeta apenas as relações humanas em geral, segundo o padre, mas também gera desconfiança na maneira com que convivemos com o “diferente”, gerando medo e políticas restritivas, constituindo-se em uma experiência catastrófica que é, ao mesmo tempo, individual e coletiva. Por isso, na sua opinião, a Kenosis de Jesus revela-se ainda mais central para concretizar efetivamente a paz.

 

Citando um trecho da Constituição Dogmática Gaudium et Spes: “Os desequilíbrios que o mundo contemporâneo sofre veicula-se àquele desequilíbrio mais profundo que está no coração humano” (GS n. 10), padre Raphael diz entender que o diálogo faz-se necessário para criar os espaços públicos de interações construtivas. “É fundamental tomar consciência do papel que a religião pode assumir, tornando-se tanto catalisadora das frustrações como dos anseios de liberdade e autonomia. À luz da radicalização das identidades, o cristão é, então, convidado a promover a cultura de paz, onde os muros do ódio e da intolerância se levantam”, conclui.

 

Matéria: Lucilene Zafalon / Pastoral da Comunicação Diocesana